Elisa é freudiana, Gabriela é comportamental, e Olívia, junguiana. Elas vão religiosamente ao bar na primeira quinta-feira após o quinto dia útil. Como parte do combinado, é proibido falar o nome dos pacientes, e não vale o mesmo para os sintomas, principalmente aqueles que parecem coletivos.

O combinado é substituir a palavra “paciente” por “cliente”, por motivos óbvios. Alguns detalhes semânticos condicionam certo sigilo ético na mesa do bar.

Na última semana, Elisa e Gabriela foram as primeiras a chegar e, antes que começassem com a pauta, conversaram amenidades, reclamaram de dinheiro, deram uma olhada no Tinder, mas não encontraram nada promissor. Vicente chegou dando as boas-vindas e entregou o cardápio. Elas pediram dois chopps.

Uma delas não resistiu e introduziu o assunto antes de Olívia chegar:

“Sabe aquele tipo chegado em remédios e perito nos próprios sintomas?” — começou Elisa, enquanto abria a bolsa para pegar um cigarro.

“Olha, vejo com lupa os que fazem uso contínuo e, às vezes, intermitente de psicoativos. Os motivos variam entre crises de ansiedade, pânico, quadros depressivos, dificuldade pra dormir e outras queixas”, disse Gabi, ajustando os óculos e lendo uma mensagem no celular.

O silêncio inaugurou o momento de checarem as redes no celular. Vicente chegou com a bebida, e Olívia apareceu atrás dele, bem na hora de brindar. Abraçou as amigas e pediu uma cachaça Salinas.

Era outono e o vento balançava as árvores, as saias e as cortinas. As três usavam óculos e estavam com os cabelos soltos. Eram jovens adultas abatidas pela labuta, eram interessantes e diferentes entre si. Uma era mais expansiva, outra, mais séria, e a outra, carismática.

Com os olhos ainda no feed, Gabi comentou: “eu tava dizendo pra Elisa que a minha lupa tem se voltado pras pessoas que fazem uso indiscriminado de remédios psiquiátricos… Esse comportamento flerta com o da minha irmã adolescente e seus colegas de sala. Eles fazem exatamente o que os clientes da Elisa fazem, mas pior, claro, porque — como se não bastasse eles serem adolescentes — ainda misturam antidepressivos com cogumelos, maconha prensada e corote.”

“Mas como é que você sabe?”

“Ah, Olívia, todo mundo já foi adolescente. E ainda que tenha o gap geracional, dá pra fazer a leitura do jovem quando começa a ficar doidão: os papos, as roupas, as estampas, as músicas, o perfil dos amigos nas redes, os programas que eles inventam, a apatia pra responsabilidade e a euforia pras festas. Só os pais que preferem não ver…”

Elisa se levantou para ir ao banheiro.

“… No caso da minha mãe, coitada, a religião e a ocupação doméstica impedem ela de enxergar a Rafa do jeito que ela é: uma adolescente porra-louca, igual a mais da metade dos adolescentes que são filhos de pais disfuncionais. Olha onde eu vim parar, acabei de infringir a lei falando da minha mãe” — Gabi levantou a mão para o Vicente e pediu uma caipirinha.

A fofoca se derramava na mesa no meio dos copos e sujeitos sem nomes, uma brincadeira tentadora para quem lida com tantos enredos complexos, curiosos e, por vezes, cansativos. Haveria outra forma de esvaziar a cabeça e aliviar o peso da responsabilidade que é oferecer a escuta ativa em troca de honorários? Os advogados provavelmente faziam o mesmo.

Elisa chegou à mesa com o cardápio e outro copinho de cachaça.

“Olívia, comece falando dos seus clientes que tomam remédio, cobiçam diagnósticos e não recusam entorpecentes.”

“Eu quero pedir algo pra comer, cadê o Vicente? Eu tenho uns clientes que tomam remédio e costumam encher a cara nos finais de semana, isso quando não tomam umas coisinhas pra agitar o rolê. Até aí, nada novo”, pontuou Olívia.

E Vicente interrompeu o fluxo.

“Eu queria dois croquetes, por favor!” — Olívia fez o pedido e seguiu com o raciocínio.

“O problema é na segunda-feira, quando voltam à rotina e se queixam de sintomas clássicos: crise de ansiedade, oscilação de humor, fadiga, uma aceleração mental que parece uma faísca de anfetamina com a triste realidade opaca, crua e amarga.”

As três engoliram suas respectivas bebidas. Por um instante olharam para os lados e observaram o mínimo múltiplo comum do bar: adultos cansados e com sede de vida. Bocas famintas e falantes. O álcool, essa ferramenta de cunho social que abastece o vazio de uma vida lotada de deveres intermináveis. Tin-tim.

“O perfil é o de sempre: adultos ou quase adultos que fazem uso de psicotrópicos paralelamente ao álcool e a outras cositas… são os mesmos que vestem seus diagnósticos como escudo”, concluiu Olívia, com ares de decepção.

“Pra mim, o pior é que eles têm a pachorra de falar que o psiquiatra diz que pode beber, e se pode beber, parece que pode tudo, né?!” — disse Elisa, tomando um gole generoso do copinho de cachaça.

Olívia levantou a mão, pediu mais chopp e desfrutou do seu momento no palanque.

“A estratégia do psiquiatra talvez seja um pouco pedagógica e perversa. Talvez ele saiba o tamanho do estrago se disser: ‘não, não pode beber’.”

Vicente chegou com o chopp, os croquetes quentinhos e três tipos de pimenta, e perguntou se queriam algo mais.

“Uma porção de frango à passarinho, Vicente, faz favor!” — pediu Gabi.

Os dedos se hidratavam na gordura enquanto as bocas desfrutavam da crocância e explosão de sabor do crocrete. Entre guardanapos, pimentas e limões, elas falavam de boca cheia. Estavam cheias de aflições entaladas.

“Alguns desses clientes não perdem uma chance de encher o rabo de cocaína, já reparou? Outros não precisam nem de muito pra acelerar: se entopem de café, coca-cola, energético, pó de guaraná, termogênico com taurina… não sei como dormem” — se posicionou Gabi, sem esconder a frustração que acompanha o arquear das sobrancelhas.

“Eu nunca sei ao certo o que desejam mais: a irresponsabilidade maquiada de liberdade ou o rótulo do diagnóstico e seus títulos de alívio” — pontuou Elisa.

“Eu tenho um cliente que de quatro em quatro meses chega ao consultório nos pontos extremos da montanha-russa, com ideias mirabolantes e comportamento insuportável, não consegue focar em nada, apenas em gastar dinheiro, mesmo quando não tem”, Gabi lamentou.

“Ai, eu tô cansada disso, acho um porre escutar a mesma história” — Olívia respirou fundo, olhou pra cima e ignorou a vontade de pedir um martini.

Vicente chegou com uma porção de frango à passarinho pelando e anunciou que a cozinha iria fechar logo mais.

“Quero um lanche bafo de onça pra levar”, pediu Elisa e retribuiu a gentileza do garçom com um sorriso sincero. Ter grana para bancar os desejos boêmios era, antes de tudo, uma alegria, apesar de todas as outras durezas da vida.

“Sabe o que eu acho pior? Os clientes culpam a química dos remédios e se recusam a rever os atos impulsivos pra não enxergarem o buraco em que estão”, Gabi reclamou, cansada e frustrada de atender adultos tão infantis e fragilizados.

“Até que a fatura chega e começa a espremer o sujeito na lacuna incongruente da realidade” — sentenciou Olívia! E as três arregalaram os olhos juntas e levaram os copos na boca.

O bar estava cheio. Os garçons corriam de lá pra cá repondo os copos vazios. Cada hora uma porção diferente ganhava olhares gulosos… Duas mulheres na mesa ao lado tiveram uma crise de riso, enquanto seus maridos falavam alto sobre o tesouro direto. Os rostos estavam relaxados, todos sem armadura, como se estivessem na copa da casa de sua avó.

“É incrível como o pânico vem com os juros do cartão de crédito. O paciente não tem dinheiro pra consulta e deve a Deus e ao mundo, mas não recusa uma blusinha de paetê no brechó hipster da metrópole” — Gabi inaugurou a ironia na mesa. E Olívia interrompeu a amiga para pontuar o inevitável.

“O primeiro “paciente” citado denuncia os níveis alcoólicos, Gabi.”

“Mas o psiquiatra disse que podia.”

As três riram juntas e o garçom chegou simpático com o lanche bafo de onça embalado, avisando que, infelizmente, precisava fechar a conta das moças. Elisa, Gabi e Olívia, minhas musas psíquicas, doadoras de migalhas egóicas. Elas montavam um belo quebra-cabeça com impressões comparadas sobre o espírito do tempo que veste a minha geração. Estávamos no mesmo bar, numa quinta-feira fresca, na Rua da Conceição, número 157, no centro de Campinas. Nesse dia, eu saí aos prantos da terapia, fui direto pro bar e tive a sorte de escutar as conversas delas. As três brindaram a saideira depois de vários chopps, duas cachaças, uma caipirinha, dois croquetes, uma porção de frango à passarinho e um lanche bafo de onça. E eu voltei pra casa, pensando em como achá-las nas redes sociais…

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Comentários

  1. Adriana says:

    De-li-ci-o-so!!!! Tive um ataque de riso “delicioso” na expressão sobre o talco branco… e o final, digno de
    você mesma. Sempre bom te ler.

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