Cheguei ao clube e de longe escutei a música alta na piscina. O desânimo me lembrou do fone de ouvido no porta-luvas. Quando voltei para buscá-lo, encontrei uma jujuba laranja naquele buraco negro que guarda pipocas de ambulantes, filtro solar, cigarro de palha, papel higiênico, cartão do seguro e o digníssimo fone. Olhei no retrovisor e constatei a sensação do verão: suor no buço.
Passei na catraca e vi um mar de mulheres na piscina redonda começando uma aula de hidroginástica. Uma cena tão pitoresca que era impossível não sentir atração pelas curvas da piscina. Tirei o short e deixei o chinelo no canto de uma espreguiçadeira. Para quem chegou pela lateral, eu já me sentia no meio do mar, abraçada pelo fluxo da água. Desconhecia todas as mulheres, e isso parecia fortalecer ainda mais a correnteza que embalava a aula numa playlist dos anos sei lá, era brega de um jeito irresistível, como as calças boca de sino, as lantejoulas cintilantes, as ombreiras e as pochetes.
Tetas jovens e antigas se agitavam nos biquínis molhados enquanto sorrisos se umedeciam de cloro. Tudo estava azul. Todas mascaradas de óculos, alguns embaçavam e isso não impedia o espetáculo de gerações; todas cúmplices de ter um útero, seja no presente ou no passado. Elas estavam ali, nadando na mesma placenta fresca, blindadas de qualquer problema real. Ali éramos crianças, desfrutando dos livres movimentos do corpo na água.
Acompanhar o ritmo da professora e desfrutar da sensação exigia compenetração, não dava tempo de se comparar; e quando eu olhava para os lados, só encontrava dentes, antigos, jovens, incompletos e curiosos, agora secos por bebidas açucaradas.
Aquilo era um mar de águas-vivas, enquanto uma sereia de chapéu regia a dança desengonçada de peixes agitados. Maiôs, biquínis e sunquínis sambavam justos em corpos históricos, corpulentos, vívidos e cheios de marcas, cicatrizes e tatuagens, enquanto muitos brincos brincavam na água.
Saí da piscina querendo que a aula fosse dupla e fui direto comprar um picolé de manga. Senti o gosto tropical do verão escorrer pelos dedos enrugados. Nenhuma ida ao clube superou essa vez que eu decidi, de última hora, ainda dentro do carro, comer uma bala canábica antes de entrar numa onda coletiva chamada hidroginástica aberta aos sábados no clube.
🐬 Nereidas Sicronizando Gerações foi destaque no Prêmio Off-Flip de Literatura 2024, na categoria Conto.
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Ouça a playlist “Nereidas da Hidro”.
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Meio coruja meio camaleão, às vezes zen, às vezes Hilst.
Paula Assis tem formação em comunicação e deformação em literatura. É ciclista, gateira e redatora. Ama os sotaques do Brasil, com preferência duvidosa por aqueles cantados e cheios de interjeições. Mora em Campinas e vive querendo uma casa com quintal e fogão a lenha, mas a paranoia não abandona a falsa segurança das câmeras e portões dos edifícios. As ambivalências existem para serem exaltadas.