(Inspirado em Ana C., Raduan Nassar e Silvia Federici)

Nesta casa entulhada de brinquedos e tranqueiras de todas as espécies, a vida doméstica se mistura com as crises de uma mulher que interrompeu a vida profissional para trabalhar voluntariamente na criação dos filhos sem remuneração nem prestígio.

Caminhando pelo corredor, o cansaço esbarra em legos e bichinhos de pelúcia. O olhar de mulher bicho enclausurado não se recorda de como é a vida lá fora, com relatórios, ligações, faturamentos e reuniões. A vida dentro de casa é uma eterna demanda de refeições, louça e roupas sujas que não são lavadas. O cesto da insatisfação está cheio de demandas encardidas.

A mulher larga tudo e vai em direção à janela sentir o feixe de sol que ilumina a área de serviço. O peso de seus afetos a impedem de ir ao encontro da vida, enquanto as crianças berram por atenção exclusiva, amamentação prolongada e fraldas quentes de repetição. Quem foi que vendeu essa ideia sádica de criar um exército de trabalhadores sem salário, férias, 13º, recesso, direitos trabalhistas, sem creche, praça pública, banheiro com trocador e espaços de amamentação? Ela só queria um horário na manicure, um porre de chopp com as amigas, um orgasmo, uma hora de leitura sem interrupção, uma noite de sono completa, um pote de sorvete napolitano, uma viagem de ida sem acompanhante, um retiro espiritual, uma despedida de solteira na praia, umas calcinhas novas, uns peitos novos, um namorado esportista, uma reunião com gente chata, rica e arrogante, um happy hour de empresa com uma penca de gente falsa moralista que faria de tudo pra cair de boca no seu decote (no primeiro trimestre da gravidez). Mas o único destino possível era chorar agachada ao lado da Brastemp e perceber a poeira brotando do chão.

Essa era a maternidade da pessoa jurídica. Sozinha, ela ia gerir o projeto mais longo, trabalhoso e arriscado de sua vida: a vida de um outro. Ainda que tenha saído do seu ventre, aquela vida não era dela, ela fora o portal e agora era A responsável por fazer dar certo, enquanto o marido trabalhava fora para prover o todo.

A mulher circula pelos cômodos como se buscasse uma solução divina para o caos da rotina, vaga pela sala como se andasse no sertão: seca de vitalidade e romantismo. Nada se parece com o pecado original da maternidade das redes sociais, a serviço dos mercados. Incapaz de se olhar no espelho e encarar seu reflexo, ela segue em direção à varanda, desabotoa a camisola e deita na rede, deixa seus mamilos beijarem o sol… Vai fundo nesse mergulho, se cobre com as abas da rede como se pudesse retornar ao casulo que nunca teve. Sem nenhuma vergonha, respira fundo na fantasia de ser protegida pelo mundo.

A sirene da ambulância grita na rua de baixo. Que hora boa pra morrer e descansar — pensou —, mas não dá pra morrer e deixar filho pequeno no mundo só com o pai. Onde já se viu?

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Comentários

  1. Re Vitrola says:

    Que texto! Passei e passo pela maternidade com esse sentimento que nunca muda: o de querer às vezes se fechar num casulo, mas agora diante de um ser quase adulto. Eu sempre achei que seria um paraíso trocar as fraldas por uma bate papo descompromissado com um adolescente… mas é quase tão assustador quanto. Não existe maternidade sem o desejo constante de fuga haha

  2. Adriana says:

    Como está bem escrito Paulinha!!! Nó!!! Parabéns!
    Tô cuma dor no peito danada aqui de dó dessa mulher… (e quantas não há por aí… ) É claustrofóbica. É desumana a situação.
    Tive uma filha, mas nunca senti esse horror de coisa sem saída. Trabalhava sempre fora (a partir dos 2 mesinhos da bebê, que ficou sem o pouco do leite materno) por que sabia que “jogaria ela pela janela” se ficasse os três turnos por conta. É inumano, aterrorizador.
    Que venham outros contos… sempre bom te ler… e as imagens são simplesmente belíssimas!

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