Após o almoço em família, Bianca lavava a pilha de louça como se regasse as plantas do jardim, se envolvia com a função sem pressa, como se o ofício manual desligasse seus ouvidos da futrica que rolava entre a sogra e a cunhada na mesa da cozinha. 

Os cabelos de Bianca estavam presos em uma singela trança, e sua barriga apoiada no mármore da pia enquanto alguns pingos refrescavam sua camiseta branca e acendiam seus mamilos firmes na blusa justa, sem o aperto do sutiã. 

As mulheres na cozinha falavam dos filhos, das escolas, das professoras, das viroses, das manias das crianças e de quando elas ainda eram pequenas, fofas e indefesas. Um era a cara do pai; outra começou a andar de bicicleta; um gostava de andar de skate; outra não gostava de nada, só de computador; um tinha resistência alimentar e só aceitava comida industrializada; outro só comia arroz, ovo e tomates; uma começou a mentir; outro começou a fumar; e entre as idades e gêneros elas foram tecendo experiências pessoais nesse bordado universal. “É uma pena que cresce, né?!” — elas lamentaram.

— Traz esses pratos pra mim, faz favor! — Bianca pediu, e Olga atendeu ao chamado, entregando o restante da louça para a nora. 

— E você? Não vai ter filho?!

— Não sei — Bianca respondeu, sem a menor vontade de estender o assunto inquisidor.

— Com quantos anos você tá? Vai demorar pra você ver, vai se arrepender — Olga puxou o assunto, querendo trazer Bianca para o meio do círculo, mas ela permaneceu em silêncio, envolvida com a louça, na pretensão de que o centro das atenções voltasse a ser as crianças daquelas mulheres e suas dinâmicas cuidadoras. 

— Criar filho depois dos quarenta é mais difícil, a gente tem menos disposição — Alice comentou, enquanto comia um pedaço de doce de leite.  

A água da pia escorreu junto com as intenções sádicas. Bianca achava uma pena que o verbo criar tivesse sido reduzido ao caminho das santas marias, mãe de todos. Tanta coisa no mundo podia ser criada, e era a sua liberdade que desejavam roubar. Ela nunca entendeu esse apetite comum das pessoas de quererem apequenar sua presença engrandecendo-lhe o ventre, as tetas e as madrugadas insones. Há anos ela sentia que sua existência na pia piava expectativas que parasitavam na peneira do ralo: lodo, gordura e restos insossos. Bianca deixou as louças escorrerem úmidas de projeções e usou o minirrodo para isolar o bolor. 

Ela lavou as mãos com pressa para sair dali e, ao invés de usar o pano de prato, passou a mão molhada no pescoço na pretensão de tirar o peso da obrigação. No tempo que esteve na pia, pensara na delícia de dar uma volta sem hora pra voltar, em dançar colada no marido, sentindo o roçar da barba e o hálito de cerveja. Pensara nas pessoas que encontraria na roda, nas mulheres girando saias e vestidos, no churrasquinho que fazia fumaça na praça, no Seu Benedito, que cantava de olhos fechados, segurando sua viola, e vez ou outra levantava o copinho de pinga para o seu orixá. 

Bianca desfez a trança e soltou os cabelos como se vestisse um escudo. 

— Você seria uma boa mãe — Olga falou, enquanto passava a mão no ponto cruz da toalha e lamentava não ter nem as migalhas do que queria. 

— O papo tá bom, mas eu vou dar uma volta — Bianca anunciou, olhando para um ponto fixo na parede, retirando-se devagar da estação das louças.  

Olga arregalou os olhos como se suas pupilas sustentassem os peitos da nora, essa mulher tão boazinha, incapaz de satisfazer as suas vontades. 

— Onde você vai? — questionou a cunhada Alice, com o olhar hipnotizado no decote imaculadamente branco de Bianca. 

— No forró da praça.

— E o seu marido?

— Vai pra lá depois do futebol.

— Vocês demoram pra voltar? 

— Não sei.

— Ah tá, aproveitem!

Bianca se retirou, aliviada. Para cada pergunta perversa, ela ajustava a postura e estufava os peitos. Essa era a sua armadura para o mundo. Mais importante que o relógio biológico era o relógio do desejo. E o de hoje era dançar forró.

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Comentários

  1. Tiara Magalhães says:

    Adoro seus contos Paulinha! A forma como você
    escreve e descreve cada cena nos envolve e nos transporta pra outra dimensão, pra uma outra realidade. É fascinante.

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