Depois de um dia de trabalho, Mário se entregou aos braços de Orfeu e mergulhou no sono profundo como quem se autoriza a se esquecer de tudo. Alguém lhe beijava as costas e o pescoço, enquanto uma mão pressionava seu rosto contra o travesseiro. Os calafrios subiam pela espinha, como se a alma pulsasse no corpo. Aquelas mãos lhe pegavam com vontade como se sua pele fosse a mais estimada do Olimpo. Foi de encontro ao próprio fogo sem medo de queimar a língua.

As flechas de Eros o pregaram na parede como se fosse um desertor. E a chama subia implacável pelos cantos úmidos do corpo. Mário estava distante da realidade, mas nunca esteve tão dentro do corpo e de seus contornos. Sentia a potência das pernas, das coxas, dos braços e da saliva cósmica que escorria com a vontade de quem prova a fruta e se lambuza. Era um corpo, e corpos se fundem no torpor do momento sem grandes justificativas. O desejo bastava. Em belas costas se deleitou, onde o prazer deslizava sobre as curvas de um corpo moreno, desenhado e definido como a paixão que nunca sentiu pela própria carne, quente e macia de suor. Experimentou a torre de intenções profundas e rompeu o muro proibido do desejo.

Não havia dúvidas, o alívio era mais forte que o ato. Não se lembrava do mundo nem de si. Era ele e um outro. Um outro sem nome, já que naquele recinto a linguagem era só corporal: uma ode aos instintos primitivos, um banquete de sentidos, a consagração de um presente retumbante entre tochas acesas, robustas e fálicas de sentido. O corpo existia para nos libertar daquilo que nos aprisiona em cavernas sinistras.

Mário acordou atônito sem querer jamais sair daquele torpor. Era outro homem? Alguém o viu naquele estado? Os outros sequer existiam naquele sonho profano. Levantou-se da cama sentindo toda a estrutura de seu corpo másculo. Estava inteiro, presente e leve, como se estivesse nos melhores dias de férias na praia, mas estava em sua própria morada. Abriu a janela, e a luz dos seus olhos era tão clara quanto o sorriso. Sentiu a brisa entrar no quarto junto do frescor do outono. Diante do sol, gritou como a gazela estridente que bate as plumas coloridas de alegria. Aquele berro não o tornava menos homem, mas extinguiu por completo sua boçalidade de macho viril. Mário, meu amigo, que delícia lhe tirar do armário.

 

 

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Comentários

  1. Fernanda Rodrigues says:

    Ah, o desespero do que é feito quando ninguém vê fazendo.
    Acho que conheço muita gente que prega uma coisa e que vive isso no submundo do inconsciente.

    Que beleza de conto!
    Que alegria te ler!

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