Coloquei a coleira no gato e o embrulhei em uma echarpe, na ilusão de reter os pelos esvoaçantes em situações de estresse. O felino relutou ao entrar no elevador e não poupou arranhões. Quando chegamos no carro, ele se enfiou embaixo do banco e resmungou com uma raiva senil de quem passa por martírios que terminam com um termômetro no rabo e agulhas no lombo. Depois do drama, na recepção fria e cinza do consultório, esperávamos a vez das vacinas.
Do meu lado, um senhor de sessenta e poucos anos usava um tênis Vans branco sem cadarço e pulseira de couro marrom. Seu aspecto simpático ressaltava a barba milimetricamente aparada e seus olhos mansos e atentos. Um perfume masculino fresco pairava no ar. Ao seu lado, uma caixa de transporte de gatos. Me senti uma tutora de merda por não ter uma caixa de transporte.
O moço olhou para o gato com doçura e perguntou seu nome.
— Tutu.
— Que graça essa máscara preta e essas patinhas com meias brancas! Tá com cara assustada.
Imaginei essa cena em universos que não me pertencem.
— É um apelido pra Capitu?
Ele perguntou sem medir a gentileza, típico de quem se interessava mais por felinos do que por mulheres. Senti um conforto desproporcional ao estar diante de olhos tão doces.
— Não, é só Tutu. Tutu Mineiro, bem bicho do mato.
— Com esses olhos ele se passaria por Capitu.
Ri com o corpo inteiro, sem mostrar os dentes. Olhei para o homem elegante e senti o gosto duvidoso do tempo. Será que chegarei aos 60? Será que ainda terei gato? Qual perfume combinaria com seis décadas? Será que chega um dia em que a gente se esquece de se lembrar da morte?
A moça da recepção anunciou o próximo atendimento:
— Tutu!
Entramos no consultório e a veterinária nos recebeu com aquela vozinha de vogais alongadas, entonação melódica e expressão facial intensa:
— Como está a Tutu?!
A essa altura eu já gostava que meu gato fosse fêmea aos olhos dos outros.
— Está bem. Veio pra tomar vacina.
Entreguei o gato aos cuidados da veterinária na mesa de inox. De longe, nossos olhos se cruzavam, dessa vez ele não me esnobava, clamava por um escudo humano que o tirasse da superfície fria.
Lembrei-me do senhor cheiroso e seu palpite nada casmurro. Seriam os gatos uma sombra machadiana, um totem sedutor para aqueles que se apegam às incertezas da vida, para além do sim e do não, da vida e da morte, dessa coisa binária que pouco importa para gatos castrados e domesticados?
— Esqueço que ele é macho.
A veterinária reparou o equívoco, sem perceber que já havia pressuposto o mesmo em outras consultas.
— Não tem problema.
É gato, e gato tudo pode. Sua elegância ultrapassa as demarcações de gênero. Ele não se importa com as perguntas sem respostas ou com os finais abertos. Ele é a síntese do hedonismo. Para além do princípio do prazer, o gato quer ser notado, receber carinho do jeito dele e quer tudo isso sem querer querendo, é um bon-vivant nato, não tem pressa para decidir, não teme o passar dos tempos, desfruta do agora e espalha suas contradições pelo mundo.
Saímos do consultório e fomos acertar a consulta. Uma das recepcionistas chamou o gatinho do senhor do Vans branco:
— Epitáfio!
Permaliteratura e outras costuras:
Falam por aí que o lar diz muito sobre as pessoas. Visite a casa desse cheiroso senhor, leia o conto Cat-Hero.
Adorei o texto! Achei forte o senhor de 60 e poucos kkk tô quase lá!
Beijos pra você! Saudade!
Ah, como eu gostaria de ser gato e tudo poder, rs. Amo seus textos. Beichos!