Marta cresceu sem jamais receber o troco da padaria em balas. Morria de medo de brincar com os brinquedos dos colegas. Os pais tinham o hábito de fazer a via-sacra das finanças em todas as refeições. Ela nunca entendeu como eles trabalhavam tanto e o orçamento nunca aliviava. Não sabia por que raios estudava em escola particular, embora tivesse o desconto na mensalidade em função do sindicato.

Martinha só queria pedir um hambúrguer na sexta-feira, esse era o evento da primeira quinzena do mês. Às vezes, a tia Elisa enchia um cofrinho em formato de coração dizendo que era um jeito de aprender a lidar com a grana. E era com as moedas do coração que rolava x-bacon com refri, dava ao menos para matar a gula, comer rápido e preencher os vazios enquanto assistia vidrada aos videoclipes da MTV.

Nessa época, as meninas da escola começaram a alisar os cabelos, passar brilho na boca, pintar as unhas e a usar umas roupas iguais às das modelos da Revista Capricho. Martinha estava cansada de só usar uniforme escolar e não ter uma roupa bonitinha para dar uma volta na praça. Ela perdia horas imaginando seu primeiro beijo no cinema, mas esse sonho tinha um gosto amargo de frustração quando ela lembrava que não tinha uma roupa para ir à grande estreia. Se sentia meio desnaturada por nunca ter beijado ninguém.

Passou semanas pensando em como comprar uma roupa e, um dia, voltando da escola, decidiu vender sua bicicleta vermelha (e pensou também em quantos hambúrgueres não dava pra comer com aquele dinheiro). Os trâmites de venda da bike fluíram como as mordidas nos sandubas. Finalmente desapegar da bicicleta seria um ótimo negócio.

Já dava pra imaginar o trailer da próxima sexta. Voltou da escola pensando no figurino do cinema matinê: calça preta, blusa listrada e all star vermelho, mas nem passava pela sua cabeça o estado calamitoso do sutiã velho, desbeiçado e confortável… Mas ninguém via mesmo.

Chegou em casa e deu de cara com a mãe abrindo uma caixa de papelão. Foi direto pra cozinha, abriu a geladeira e ali permaneceu, na busca por achar algo apetitoso. Se tivesse o dinheiro da bike, dava pra comprar um sanduíche com bacon, pensou. E gritou de frente pra geladeira: “e o meu dinheiro da bicicleta, mãe?”.

“Tá aqui.”

Fechou a geladeira e foi direto à mesa da sala.

“Tá aqui ó, comprei suas apostilas da escola.”

“Mas o dinheiro era meu.”

“Pois as apostilas também são.”

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Comentários

  1. Fernanda Rodrigues says:

    As prioridades e a comunicação truncada, né? Sempre em conflito. Acho que seu conto retrata bem o pensamento utilitarista dos pais que foram pais entre as décadas de 80 e 90 (ou antes disso). Não tinha espaço pra sentimentalismo (e, muitas vezes, para conversas).
    Coisas que a gente entende quando cresce, mas que não deixa de deixar um gosto amargo…
    Lindo conto, apesar de triste!

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