roberto.vancetto@gmail.com        10 de abril de 2024 – 22:05 
para mim

Eliz,

Passei os dias ruminando daquela maneira que nos é comum. Organizei o meu armário e todas as gavetas da sala e só parei quando já não tinha mais energia pra tomar banho. É mais forte do que eu, mas no dia seguinte me senti ótimo por saber que vou viajar e a casa vai permanecer em ordem, para o bem dos gatos.

Contratei uma aluna da Vanessa pra cuidar deles. Ainda não a conheço, mas já tenho pena. Lembra quando a gente era jovem e estudava Direito pra corresponder às expectativas dos nossos pais? Com a diferença de que a gente nunca precisou trabalhar durante a graduação. A garota queria fazer iniciação científica, mas precisa de grana pra ajudar em casa e pagar o próprio transporte, ela mora em Betim. Você sabe quanto custa um livro de Direito Penal hoje em dia? Na nossa época, a gente só queria se entorpecer e conversar sobre as aulas de Filosofia do Direito, a gente acreditava que estudar direitos humanos fosse revolucionar a nossa geração. 

A gente tinha um envolvimento superficial com as pautas do DCE, ao contrário das festinhas GLS. Me surpreendo com as revoluções dos movimentos e das siglas atuais, me esforcei tanto pra ser um gay discreto na juventude, na premissa da sobrevivência, hoje em dia não posso dizer o mesmo. 

A Vanessa diz que Catarina, a supernanny dos gatos, gosta mais dos animais do que de gente, é um excelente sinal, e você há de convir, mas deve ser difícil fazer Direito aos 20 anos dos dias atuais. Na nossa época, não tivemos muita opção. 

Ninguém acredita quando conto que não uso WhatsApp nem Instagram. A Neusa, que trabalha aqui em casa, passa metade do tempo trocando mensagens de voz intermináveis. Outro dia perguntei por que ela escuta os próprios áudios. Ela disse que isso a ajuda a se entender melhor. Cada um arruma um jeito de se ouvir. Neusa conversa tanto com os gatos, difícil resistir à tentação. Às vezes, gosto de imaginar Neusa de porre, mas ela é evangélica e tem pavor de bebida, você consegue imaginar o porquê, as estatísticas não mentem,  caem naquele clichê triste, intuitivo e familiar. 

Quando comecei a escrever , me deu uma paz danada saber que ninguém iria interromper o meu raciocínio e, por isso mesmo, fiz a pausa para o café e aproveitei pra fumar um cigarro medicinal. O email não tem o baldeamento das emoções, nem a pompa das esperas e demoras, mas ainda assim me aproxima das cartas. Você sabe da minha tara por envelopes.  

Esses dias, a Vanessa me deu uma flor de maconha chamada sour hawaiian haze, fiquei surpreso com a sensação do abraço pacifista. Não há aceleração de pensamento, nem delírio. Você sempre confiou em mim quando a gente usava droga sintética, não vai ser agora, com receita médica e controle de qualidade canábico, que você vai dar pra trás.

Já organizei os papéis da Anvisa pra levar pra você. Há quantos anos você não fuma? Quero proporcionar esse sopro de paz às suas paranoias delirantes. Aluguei aquele Airbnb confortável e já consigo imaginar a gente vendo o pôr do sol com os pés na piscina, comendo gergeliko. Ando cheio de pequenos desejos.

Esse ano completo a idade que um dia desejei morrer, é curioso como a gente se apega a umas ideias equivocadas. Quando a gente era adolescente, os velhos de 60 anos estavam decrépitos, lembra? Seria o reflexo de uma vida adulta sedentária, hipocondríaca e amargurada? Será que é assim que enxergamos as gerações anteriores? Uma derrocada tão próxima do hospital e de todas as complicações. 

Toda vez que arrumo mala, parece que é um ensaio para partir para o além. E me bate uma vontade de viajar só com uma mochila pequena, dessas que os jovens usam pra trabalhar.

Comprei uma câmera pra acompanhar os gatos online. Você acha que a conexão da Chapada vai aguentar? Você não tinha smartphone até ano passado, a Marta me contou que sua afilhada te deu um de presente. 

Vamos fazer feijoada de feijão vermelho? Gosto daquele ritual de cozinhar tudo um dia antes e deixar o feijão curtir nas carnes: só paio, carne seca e linguiça. Vou fazer um vinagrete com coentro que você vai adorar. 

Chego aí depois de amanhã. Estou sonhando com um banho de cachoeira na Almécegas, e tem tanta coisa que quero fazer. 

Escreva sem pressa, se preferir, não escreva. 

 

Beto. 

 

Permaliteratura e outras costuras:

 

Como você imagina a pessoa que escreveu este e-mail? Leia a crônica A espera da vez”; 

 

Visite o apartamento de Beto e conheça Catarina em “Cat-Hero”;

 

Entre na cozinha de Eliz e presencie seus rituais dominicais em Alto Paraíso de Goiás no texto “Feijão amigo da solidão”.

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