A menina recebe a chave e é liberada para subir. Abre a porta e sente o cheiro característico da casa dos outros: lustra-móveis amadeirado, plantas verde-escuras, e um fundo caloroso de musk e âmbar com a doçura da baunilha. Casa de bicha, uma experiência sem igual. 

Catarina é estudante de Direito e descolou esse serviço na casa do Beto, por indicação da professora de sociologia Vanessa, uma acadêmica natureba que não esconde sua predileção por alunos bolsistas. 

Vanessa incentivou a aluna a tentar a iniciação científica, mas alertou de cara que a bolsa não estava à altura do esforço. Catarina comentou que tinha se cadastrado no aplicativo de cuidadores de animais, e a informação caiu como uma luva: no feriado seguinte, a professora iria para Boipeba e precisava de alguém para cuidar do seu vira-lata Adorno. 

Vanessa aprovou o serviço da aluna, indicando-a para amigos de amigos e possibilitando uma cartela de clientes conhecidos que combinavam de pagar um valor acima do pago pelo app, para ajudar a estudante a sobreviver no clã de jovens de classe média alta do Direito. 

De conhecidos em conhecidos, hoje é o dia de cuidar dos filhotes do Beto. Ela insere a senha na porta automática e o barulho do destrave acompanha um sonoro bipe polifônico. Ela entra na sala, tira a mochila e respira aliviada por esse serviço envolver solitude em ambientes aconchegantes. 

Antes de encontrar os felinos pela casa, Catarina explora os cômodos com uma curiosidade infantil que beira a euforia. Abre as gavetas do aparador da sala e sente o sopro transcendental da coleção de incensos importados. Pela decoração da casa, Beto conhece a Índia, a Malásia ou a Tailândia. As máscaras na parede e as colchas com estampas tribais não enganam. Os tapetes grandes em tons terrosos são mais convidativos que o sofá de veludo preto com os pés de bronze. 

Ela escuta um miado tímido que vem do corredor. É o Epitáfio: panterinha preta, esbelta, brilhante e muito simpática que chega para cumprimentá-la. Como um bom anfitrião, Pipi se enrosca nas pernas cumpridas da jovem, que se agacha na altura dos olhos, de igual pra igual. Pacto de segurança. 

O que ela mais gosta nesse serviço, depois de observar todos os detalhes da casa, é de conversar com os gatos e imaginar o tom da voz de cada um deles, um caminho sem volta para quem enxerga o mundo felino como uma espécie de seita. 

Pipi é um gato preto com os olhos verdes, é adulto, mas seduz como se fosse um nenê. Catarina o pega no colo e vai procurar o Fubá, um gato laranja reservado, um pouco antissocial quando comparado ao irmão, mas fofinho, excêntrico, melancólico e sonso. Encontra o Fubá na cozinha e dá de cara com o bilhete na porta da geladeira: “Catarina, fique à vontade, até mesmo para tomar sorvete. Obrigado por cuidar dos meninos. Beto”. Tem cliente que parece até que já passou por privação e consegue ser delicado sem parecer forçado, ela pensa enquanto abre a geladeira e passa a colher no pote de homus de tomate seco. Na sequência, abre o freezer e confere o sabor do sorvete: chocolate belga. Gostoso demais comer comida diferente na casa de gente rica. 

Ela, então, segue para o protocolo do serviço: alimentar os bichinhos, colocar gelo na fonte de água, passar catnip nos brinquedos e limpar as caixinhas de areia. 

Ao passar pela sala, não resiste e aperta o botão “ON” da vitrola e espera sem saber como isso funciona. O ruído da agulha inaugura um sentimento retrô, logo interrompido por sons de orquestra. Ao lado da vitrola, a capa do vinil: “Mal dos Trópicos”. 

Catarina sente que a música é, para além de toda a disposição dos móveis, um chamado para ligar as luzes e atender ao seu desejo infantil de abrir as gavetas do dono da casa. Abre a segunda gaveta do aparador, vê caixas menores de madeira e, numa delas, meia dúzia de cigarros enrolados em sedas marrons; o cheiro herbal sobe fresco e ainda mais sedutor que os aromas indianos. 

De todas as características dos jovens de vinte e poucos anos, o impulso é o mais potente. A vontade pega fogo, não há deleite maior do que o dos inconsequentes no horário de serviço, e ninguém daria falta de um cigarro no meio de seis. Sem pensar, usa um dos isqueiros pesados e dá dois tragos nisto que seria erva fresca com algo um pouco doce. Camomila, talvez? Traga como se estivesse familiarizada e segue o caminho para a suíte de Beto, com o cigarro na mão. Os gatos seguem seus rastros.

Ao abrir o armário da suíte, seus olhos brilham com as luzes internas na lateral do móvel: camisas dispostas em variações cromáticas, como estantes de livros do Pinterest. Os tecidos se misturam e as cores são o arco-íris em forma de organização. É impossível não se sentir segura aqui, no meio de tanto esmero e vidros de perfumes importados. Uma gaveta guarda uma coleção de pijamas e não dá pra escolher qual tecido é mais macio. Os gatos curtem o espaço que tem o cheiro do dono, puxam as gavetas sem cerimônia, como crianças quando tomam posse do que é dos pais. 

Catarina percebe que o cigarro se apagou, quase como um sinal dos anjos. Abre a maior gaveta que embala seu recheio em um tecido escuro: acessórios de couro, cordas, algemas, mordaças, vibradores e alguns objetos que ela não entende muito bem a função. A gaveta da orgia é de um exotismo palpável, enquanto àquela dos incensos instiga olfatos despercebidos. O baseado cai apagado em cima dos brinquedos eróticos quando ela dá de cara com o maior dos caralhos. Que absurdo, fumar dentro do closet do cliente! Que absurdo, não mexer em tudo que está aqui! Que absurdo, ser mulher e não ter um quarto deste repertório sexual! O elitismo é cruel também na hora de sentir tesão ou o privilégio é gay de ter repertórios nada tradicionais? São muitas as perguntas e desejos misturados com dúvidas e curiosidades, o que dá mais vontade ainda de fumar. Decerto não é prudente mexer em brinquedo erótico dos outros, ainda que não duvide da higiene do dono diante de um armário que parece uma galeria de arte californiana. 

Ela volta para a sala e dá mais dois tragos no cigarro da seda marrom. Tira os sapatos e percebe a companhia fiel dos gatos, eles parecem curtir o cheiro da erva. É uma ótima ideia tirar o sutiã e beber um copo d’água para tirar a secura da boca. Enquanto bebe água, ela sente vontade de experimentar tudo que está na geladeira, mas a vergonha de abrir a comida lacrada dos outros é maior que o desejo. Pega, então, o que lhe é de direito: sorvete! Sente o gosto fresco da infância que não teve: abundante de açúcar e despreocupações. 

Volta para a sala e deita-se no tapete turco. Respira fundo e sente que suas costas fazem parte do chão. Seus pés tocam as franjas macias do tapete. Ela vira de lado e respira fundo em posição fetal. Como deve ser morar num lugar sem medo dos outros invadirem seu espaço? Os gatos vêm chegando de mansinho e se encostam nela, como se quisessem esquentar os seus vazios. Ela pensa em todos os brinquedos eróticos de Beto, lamentando sua ausência de interesse sexual. É tão jovem, mas já tão endurecida pela vida. Que caminho é este de fazer Direito porque a mãe quer? Pensa em dissonante conformismo. 

Epitáfio sobe no aparador, senta-se e fica como se fosse um abajur iluminando detalhes despercebidos. Do chão, Catarina olha pro gato e vê um objeto preto menor ao seu lado. Espreguiça e sente seu pescoço estalar. Pensa se algum dia sua casa vai ter um terço daquelas cores, se sua geladeira vai ter um quarto daquelas comidas, se fazer Direito vai lhe dar direito de morar só, apenas com gatos, plantas e tapetes bonitos. 

Epitáfio ainda está na mesma posição em cima do aparador. Cat franze os olhos para tentar enxergar melhor o objeto preto ao lado do gato e leva um susto com o que parece ser um delírio, mas não é. Seu coração palpita. A força da gravidade a impede de se levantar. Aquela maconha com camomila tinha algo mais, no mínimo. A aflição que cresce no peito lhe dói as costelas como se lhe faltasse o ar. Os músculos se tensionam para caber na situação. Ela leva os braços ao rosto como quem tenta esconder a cara de pau. Sofre no corpo tudo aquilo que desfrutou há pouco. Lembra-se vagamente do capítulo “Os recursos para o bom adestramento”, de Vigiar e Punir, e não sabe mais como se encaixar neste mal-estar foucaultiano. 

Ao lado do Epitáfio, tem uma câmera que filma toda a sala, e agora é tarde para pensar nas desculpas que dará para o pai dos pets. O que Cat não sabe é que, nesta semana, Neusa arrastou os móveis para tirar a poeira dos fios e se recusou a ligar a extensão de sete entradas na tomada. Morria de medo dos gatos levarem choque e, além disso, nunca é demais economizar energia.


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Comentários

  1. Fernanda says:

    Paula, querida. Que privilégio o meu poder ler um conto tão gostoso como esse. Obrigada e já me deixou com um gostinho de quero mais. Parabéns pelo blog e, como já disse, quero mais. Beijo

  2. Nayse Casifre says:

    Texto incrível de uma autora ímpar!

    Sorri sozinha, lembrei de momentos que vivi e outros versos cutucaram o meu cérebro como uma espátula mexendo na geleia sem pão pra ser passada.

    Já estou ansiosa para ler os próximos textos!

  3. A analista says:

    Obrigada por gentilmente dar vida a Cat e nos fazer advogar pela existência dela: tantas Cats! Tantas pessoas que se dão ao prazer de desfrutar e são roubadas desse direito por pequenos objetos (ligados-desligados).
    A única coisa que pareceu diferenciar Cat dos cats é que diferente dela, os gatos não sentem culpa de deliciar nas coisas boas da vida. Quem dera nós!
    Parabéns Paula por gestar essa e outras belezas. Sempre fã por aqui! Bela estreia!

  4. Silvia Bertolaccini says:

    Ouço você falando quando leio seu texto, dá para ficar horas te ouvindo/lendo….gratidão por melhorar o mundo com as suas palavras! Precisamos de você paratiense essa aventura terrena menos entediante!!! Estou feliz!!!

  5. Adriana says:

    Para Virginia, a vida é muito perigosa, e disso todos nós sabemos. Pra Guimarães, o que a vida pede da gente é coragem, e isso você tem demais. Muito feliz, e por que não, orgulhosa por toda essa coragem de expor sua alma, seu âmago, sua verve. Adriana.

  6. Katy says:

    Não há dúvidas que esse conto delicioso é seu. Adorei conhecer e reconhecer a Cat. Espero ansiosa pelos próximos ✨

  7. Paulo Valle says:

    Querida Paula. Fiquei emocionado! Pelo conto, por você e pela mulher que você se tornou! Parabéns!

  8. Cesinha says:

    Que legal Paulinha. Não sabia que vc escreve tão bem. Parabéns! Aguardando os próximos.
    Tb prefiro os felinos. Grande abraço.

  9. Stê says:

    Texto delicioso de ler, Paulinha. Sua escrita é maravilhosa! Parabéns!!! Vou navegar aqui para me deleitar com os outros contos. Beijo grande!

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