Marta faz tudo em casa: pão, coalhada, almoço, jantar, compostagem, as unhas, o cabelo, depilação, os materiais de limpeza e até a coleta seletiva; é a sacerdotisa da xepa. 

Optou pela alimentação vegetariana ainda menina, quando sua mãe pediu que comprasse 2 kg de patinho moído. Martinha andou seis quarteirões segurando uma sacola de plástico, pensando no patinho bonito que não teve a chance de virar cisne e fugir. Pobre animal, poderia ter sido feliz em fila indiana junto dos irmãos que seguem o nado da mãe com seus pezinhos ágeis, igualzinho àquele macarrão de gravata que seria servido no jantar. O pato não combinava com o prato, seu olhar era muito doce para uma refeição servida com molho vermelho. 

A história estava errada e Martinha tinha certeza. O patinho feio não aceitou a seita dos patos normais, e já que eles não lutavam pelo direito dos animais, decidiu fugir para encontrar outras aves pensantes. Fazer escolhas não parecia simples, e Martinha não queria ser engolida por ninguém. Naquele dia, decidiu que seria a cisne da família. Na vida adulta, era mais fácil justificar uma escolha em função do preço da carne e pronto, assunto encerrado. Ninguém questiona nada quando a desculpa é vaga e sem ideologia. Marta é incapaz de pagar o pato.

Ilustração: Fernanda Gaspar @f.gathaspar

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Comentários

  1. Cida Gerken says:

    Você tem uma escrita muito inteligente! Adorei o final – “…justificar a escolha pelo preço da carne…” diria papai, o querido vovô Jorge – fim de papo! Parabénsss, Paulinha! 👏👏👏

  2. Ana Franke says:

    “Ninguém questiona nada quando a desculpa é vaga e sem ideologia”. Bem assim. Poderia também dizer que carne não lhe caia bem e assunto encerrado. Falar em amor aos animais incomoda demais.

  3. Edu Carazza says:

    Existem pessoas que eu tenho orgulho, mas você vai além disso comadre! Você é foda, seu projeto é foda!

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